No debate sobre o colapso do indivíduo e de seus afetos, que marcou também o lançamento do livro “O circuito dos afetos – corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo” (Cosac Naify), Safatla relacionou a política como uma questão de afetos. Nossa ação, afirmou, é determinada pelo que percebemos, sentimos e não sentimos. “Existe uma racionalidade dos afetos. O que me afeta não é resultado de uma lei que me dou, mas do que me coloca em contato com outros. Que não é resultado da minha vontade.”
Segundo o palestrante, o medo é um afeto que funciona como elemento de coesão. “Por terem medo uns dos outros, os cidadãos aceitam que a proteção do soberano.”
Ele defendeu uma mudança na ideia de indivíduo como alguém “composto de propriedades” que o individualizam e garantem a sua particularidade. “Devemos abandonar uma ideia de autonomia para pensar no que significa sermos sujeitos heterônimos, atravessados por algo involuntário”.
Em sociedade, disse, queremos que nossos predicados sejam reconhecidos como tais. “No fundo é uma consensualidade mercantil.”
Ele questionou se indivíduos são naturalmente dados ou se são um processo de produção. “Mas quem os produziu? O que é necessário perder?”
De acordo com o especialista, relações de política são relações de confirmação de nossos predicados supostos. “O outro confirma a minha identidade, mas o verdadeiro encontro é uma despossessão. Algo que me obriga a mudar a narrativa de mim mesmo”, disse.
“Toda estrutura de relações sociais são estruturas de despossessão. Buscamos ser capazes de viver o que não sabemos. E a atualizar nossa imagem. Uma vida social baseada no medo sempre verá o outro como invasor potencial”.
Essa forma de vida, afirmou, está ligada a um princípio paranoico, ligado à necessidade da conservação do que nos é próprio. Para ele, no entanto, a vida social é a dimensão de um espaço comum que é impróprio: não pode ser apropriado por ninguém.
Além do medo, outro afeto que nos move é o da esperança, uma expectativa de que um bem ocorra. Ambos os afetos, segundo Safatle, são ligados a uma mesma temporalidade e a uma mesma estrutura do tempo.
Para o autor, no entanto, estamos ainda vinculados pela experiência do tempo marcado pela expectativa. “A restrição das nossas expectativas é hoje vista como um problema. Devemos nos livrar de uma temporalidade da expectativa.”
O projeto no tempo, disse ele, é a imagem do porvir. Do presente organizamos o campo em direção ao futuro pela projeção de imagem, mas nada que saia da imagem do tempo pode ser vivenciada. “Precisamos de um outro tipo de tempo. Precisamos de um tempo que nos expõe à complexidade do presente.”
“Nossa miséria de criação política vem do fato de não conseguirmos sair dos afetos esperança x medo”, afirmou.
Citando Adorno, ele disse ter chegado o momento em que devemos produzir o que não sabemos o que é. “Boa parte de nossas ações é impulsionada pela ordem do não-sabido. Todos os acontecimentos históricos foram feitos por pessoas que não sabiam para onde ir. Isso não os paralisava.”
Como exemplo, citou que, no século XII, quem dissesse ser republicano era considerado louco – pois, até ali, as experiências republicanas anteriores haviam fracassado. Um acontecimento, no entanto, não pode ser medido pelo resultado imediato, mas pelas aberturas que ele produz e pelas latências que não vão desaparecer.
Mas é possível um sujeito capaz de agir tendo em vista a abertura dessas latências?, questionou. “Quem pensa seus interesses como interesses de indivíduos não é capaz de compreender seus afetos. O presente tem camadas tão profundas que logo nos perguntaremos por que ficamos tão presos à superfície do instante. A questão é saber como chegamos ao ponto de desconfiar de nosso próprio tempo e imaginar que ele estava paralisado.”
O que acontece em política hoje, afirmou, acontece na vida psicológica do sujeito: uma perda de confiança na capacidade de fazer. “As questões psicológicas não deveriam ser negligenciadas, em política, como questões menores.” E questionou: “Por que nos bloqueamos? Por que os horizontes de experiência se retraem? Há hipóteses que não podemos negligenciar. Quantas vezes, no interior da história, tivemos condições para revoluções e ela não aconteceu? E o contrário?”
Para Safatle, o acontecimento não precisa de autorização para acontecer. “A ideia da vida social como contrato entre indivíduos permanece hoje com um elemento do neoliberalismo: um ideal empresarial de si. O neoliberalismo transformou todas as instituições em ‘empresa’. Os indivíduos pensam em si mesmos como investimento”, disse.
“Ainda temos a ideia de que onde há indivíduo há liberdade. Essa ideia é o eixo mais absurdo de nossas formas de vida. Existe uma ideia de que, fora dessa ideia de indivíduo, só há o caos. Nossa liberdade é pensada sobre a figura do livre-arbítrio. É uma ideia miserável. Livre-arbítrio significa: tenho opções e tomo decisões a partir de escolhas racionais. Mas liberdade não é escolha. Liberdade não é poder escolher ou não, realizar desejos ou não. É reconhecer o que é imposto a nós como necessário. Podemos aceitar um processo que ocorre em nós, a começar pelo inconsciente que nos leva a certas coisas. O reconhecimento da necessidade é a verdadeira liberdade.”
Safatle avalia o momento político atual como um momento de paralisia. “Práxis e teoria, segundo Deleuze, são relações horizontais. Quando a práxis para de andar, é preciso fazer teoria.”
No encontro, ele citou ainda um terceiro afeto político além de medo e esperança: a ideia de desamparo. “Uma demanda por cuidado é uma demanda antipolítica por natureza. Política não é um pedido de socorro. É preciso instituir a autoridade para demandar cuidado, e ela vai responder por aquilo que te falta. Mas política é destituição de autoridade. “A maturidade psíquica está ligada à afirmação do desamparo. É deixar de pedir amparo. E deixamos de pensar sob a forma de expectativa.”
De acordo com o palestrante, a afirmação do desamparo é viver com os afetos que não controlamos. “É viver com um tempo não marcado pela expectativa.”
“Criticamos a ideia social de controle, mas controle é disposição psíquica. A ideia de controle é a melhor figura da negociação entre minhas disposições conscientes e inconscientes.”
Ele questionou em quais condições podemos entender que sujeitos políticos serão produzidos quando afirmarmos nosso desamparo. “O complemento da esperança com o afeto é a melancolia. Nós, de certa forma, chegamos a esse ponto porque não existem mais atores políticos. Tem uma história da esquerda brasileira que, hoje, acabou. E internalizamos o objeto perdido. Sentimos culpa. Cabe a nós a constituição de novos atores políticos, a partir da limitação de um ciclo da história brasileira”, defendeu.
“A atuação coletiva pode ser uma ação com todos os elementos de indivíduos presentes. Pensar o coletivo é pensar o comum que não é algo a ser apropriado por outros. Ele é ‘impróprio’. Não se apropria. O comum garante um vínculo que não é mais um vínculo associado à ideia de propriedade. É possível pensar um comum no qual eu não partilho nada com ninguém. E isso nos faz comuns.”