domingo 29 2013

Simone de Beauvoir - O Existencialismo é um Romantismo*

 “Ninguém nasce mulher; torna-se mulher”


Simone de Beauvoir et Jean-Paul Sartre (cerca 1950)
Amor e liberdade. Os ideais que inspiraram o amor entre Simone de Beauvoir (1908-1986) e Jean-Paul Sartre (1905-1980) não poderiam ser mais românticos. Ainda que, provavelmente, eles não gostassem de ouvir isso.
Não digo isso para ofender ou desautorizar a mais comentada e mal-falada história de amor do século 20. Apenas acredito que, ao fugirem dos estereótipos, expectativas e padrões, eles construíram um grande sonho, e há algo mais romântico do que viver um sonho? Se amor pleno e liberdade absoluta são duas grandes utopias, o projeto do casal de unir esses dois ideais numa relação afetiva foi um desafio a todos os valores de sua época. Eles venceram o desafio.
Muito se disse sobre o casal durante os últimos 80 anos, e muito mais se especulou. O livro Tête-à-Tête (de Hazel Rowley, Objetiva), publicado no Brasil em 2006, é o primeiro relato detalhado dessa história que procura se ater aos fatos e desvendar as especulações. Para escrevê-lo, a biógrafa mergulhou na correspondência do casal, nos diários, ensaios e romances que ambos escreveram e em cada carta, cada entrelinha, descobriu que, na juventude, Simone e Sartre formavam apenas mais um casal apaixonado. Do início do “namoro” à morte de Sartre, eles nunca deixaram de se amar, embora a atração física e o sexo talvez nunca tenham sido o centro dessa relação.
Menos paixão e mais audácia talvez tenha sido a receita de Simone e Jean-Paul. Um amor que já partiu de uma premissa corajosa: a de que existem amores necessários e outros, contingentes. Entre Simone e Jean-Paul, o que havia era um amor necessário. Dele, não poderiam escapar. Quanto aos amores contingentes, eles não queriam deixá-los escapar.
O pacto de compromisso que firmaram entre si era, em tudo, o oposto do casamento. A primeira regra: falar tudo um ao outro. Tudo sobre si mesmos. Tudo sobre os outros. Principalmente sobre os sentimentos que tinham pelos outros, mesmo que isso significasse crises de ciúme, demonstrações mútuas de desinteresse e tédio, dores provocadas pela dependência, conflitos. Segunda regra: a dedicação completa de um ao outro, apoio mútuo, mesmo nos momentos em que discordavam.
Uma relação íntima Na prática, eles estavam juntos, mas nunca se casaram (embora tenham chegado muito próximo de se casarem com outras pessoas); respeitavam-se, mas nunca deixaram de causar constrangimentos e sofrimentos um ao outro em nome de sua liberdade; declaravam-se apaixonados até a morte, mas tiveram vários amantes, alguns deles em comum (o que significa que pelo menos um deles – até onde o livro consegue chegar, apenas Simone – se envolveu em casos homossexuais).
A Europa do entre guerras e das relações formais, dos casamentos por interesse e da luta de classes não estava preparada para aceitar toda essa ousadia amorosa. Em uma sociedade em que Simone era uma das raras professoras de Filosofia, em que as mulheres não podiam entrar desacompanhadas em um café, e em que o casamento era um imperativo, os dois chocaram a todos. Para amenizar o choque, dizia-se que eles viviam uma “relação aberta”, eufemismo para o que era entendido como pura promiscuidade.
É um erro comum dizer que eles viviam uma “relação aberta”. Um erro que talvez demonstre que ainda hoje não é fácil conceber e aceitar uma relação como a deles. O que eles viviam era uma relação íntima e secreta, cuja dinâmica só podemos remotamente vislumbrar. O resto fica por conta das fantasias de cada geração.
Hazel Rowley revela que eles viviam uma união rara que superava o amor e resvalava para a construção de um pensamento filosófico consistente e desafiador: o existencialismo. Queriam mostrar para o mundo que a liberdade é, sim, o valor principal da existência e que a partir dela, homens e mulheres constroem suas histórias, como indivíduos, como casais, como seres políticos. Cada um de nós é resultado das próprias escolhas e responsável por elas, como mostra Sartre em seus escritos filosóficos, entre eles O Existencialismo é um Humanismo (1946, pdf aqui).
Talvez, mais do que a história de amor, tenha sido essa completa aceitação da liberdade e a vivência livre levada ao limite que tenha chocado à Europa e que choque a muitas pessoas ainda hoje. Em cada uma de suas escolhas, Sartre e Beauvoir foram completamente livres, mesmo que isso significasse enfrentar todos os demônios internos e a condenação da sociedade. Mesmo que isso significasse errar e mais à frente, assumir o erro.
O “rival” de Sartre
De todas as escolhas que fizeram no amor, talvez a mais polêmica e incompreendida tenha sido a recusa de Simone de Beauvoir em se casar com o escritor norte-americano Nelson Algren. Eles se conheceram em 1947, na primeira viagem de Simone aos EUA, e se apaixonaram. O amor era intenso e correspondido. Jean-Paul tinha uma amante por quem também estava envolvido. Qual o obstáculo para o casamento?
Simone não tinha dúvidas de que, entre todas as pessoas com quem se envolveu, Nelson era o único que poderia ser amado por ela tanto quanto Sartre. Entretanto, disse a Algren que não poderia trair o compromisso que tinha com Sartre e recusou o pedido de casamento.
Até hoje, ela é incompreendida por essa recusa. Como sacrificar uma paixão por uma relação em que já não havia sexo, envolvimento amoroso, romantismo? Muitos leem nessa decisão de Simone uma submissão a Jean-Paul Sartre. Outros consideram que, ao abrir mão do casamento, ela traiu o amor de Algren. Há ainda os que dizem que seu “existencialismo” a impedia de viver uma relação afetiva cheia de romantismo.
As cartas de Simone a Nelson provam que ela era romântica e apaixonada. Mas não quis subordinar sua liberdade a outra pessoa, ao modo tradicional de viver um romance. E sempre me pergunto se existe maior romantismo do que abrir mão de tudo para viver um amor fora dos padrões e das tradições.
É bem provável que Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, em seus tempos de juventude, me desprezassem por dizer que seu amor era romântico. Sua maturidade foi toda dedicada a reafirmar os valores que pregou, mas também a uma autocrítica sem piedade. Ela tinha consciência de que muitas das atitudes que adotou, com ou sem Sartre, eram os mesmos velhos valores da sociedade burguesa, apenas vestidos com as roupas da ousadia e da juventude.

Nenhum comentário: